Por gabriela.mattos
Ex-presidente do Uruguai comeu rabada e feijoada em bar na TijucaLeandro Resende / Agência O Dia

Rio - O Rio de Janeiro acorda com mais humildade, esperança e generosidade nesta sexta-feira, se forem seguidos os conselhos do ex-presidente e senador do Uruguai José ‘Pepe’ Mujica, de 80 anos. Ele esteve ontem na cidade para ser homenageado e arrastou centenas de jovens para a Uerj, onde foi ovacionado após pregar o fim dos privilégios para políticos, defender a democracia e dizer que a “mudança do mundo começa por nós mesmos”. Mais cedo, ao comentar o momento político brasileiro, disse que o país tem força suficiente para superar as dificuldades e defendeu a descriminalização da maconha — o Uruguai é um dos países com legislação mais avançada sobre drogas no mundo.

Ex-guerrilheiro no combate à ditadura militar uruguaia dos anos 1970, Mujica tornou-se presidente do país em 2010 e ficou no cargo até março deste ano. Além da mudança na política de drogas, apoiou a legalização do aborto e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Notabilizou-se, também, pelo estilo de vida longe dos padrões políticos (especialmente os brasileiros): abriu mão dos benefícios e fez sua vida com apenas 10% do salário, uma casa de um quarto e um fusca ano 1978.

“Políticos devem viver uma vida simples como a maioria, e não como uma minoria privilegiada”, declarou o uruguaio, durante homenagem na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro do Rio. Ele foi eleito ‘personalidade do ano’ pela Federação das Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul.

Perguntado sobre o atual momento brasileiro, em que denúncias de corrupção se multiplicam contra quase todos os partidos, Mujica afirmou que o problema do país é o “derrotismo”. “O Brasil tem força suficiente para superar as dificuldades. O problema é que vocês se apegam ao derrotismo, e acham que nada serve para nada. Vocês têm um país maravilhoso, só depende de vocês para seguir em frente.”

Depois da pausa para o almoço num botequim na Tijuca, Mujica foi para o hotel, tirou um cochilo e foi para Uerj, onde foi recepcionado como astro, com direito a bandeiras e cantos. Quando questionado sobre a falta de líderes políticos de esquerda e a crise de representatividade do sistema político, o ex-presidente uruguaio afirmou que há “crise nos valores da nossa civilização”. “O problema muitas vezes não são só os presidentes, toda a corte política tem problemas”, respondeu, ovacionado. A plateia, então, entoou cânticos contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e “não vai ter golpe”, em referência às manifestações que querem o impeachment de Dilma Rousseff.

Almoço regado a caipirinha e cerveja

O ex-presidente e senador do Uruguai José Pepe Mujica provou mais uma vez sua vocação para simplicidade e almoçou longe de qualquer restaurante badalado do Rio de Janeiro: optou pelo Bar do José, na esquina das ruas Barão de Ubá e Santa Amélia, na Tijuca. Comandado há 14 anos pelo cearense José Alves Ferreira, de 62 anos, o bar serviu feijoada, rabada com agrião, cerveja e caipirinha para Mujica e sua comitiva. O uruguaio saboreou a culinária de boteco ao som de Amado Batista. “Escolhi a trilha sonora porque gosto e deu um clima mais legal pro almoço. Nunca imaginei ter um presidente aqui”, afirmou cearense, sentado na mesma cadeira de madeira onde horas antes sentara Mujica.

Encontro com o ex-presidente e senador do Uruguai%2C José 'Pepe' Mujica%2C lotou a Concha Acústica da Uerj Tiago Frederico / Agência O Dia

José Alves veio do Ceará para o Rio há 44 anos “tentar a vida”. Depois de rodar por bares como garçom, gerente e atendente, conseguiu abrir o pequeno bar numa esquina tijucana. Nas paredes, as garrafas de aguardente, conhaque e cachaça logo dividirão espaço com um grande pôster. “Quero a minha foto com o Mujica naquela parede ali”, apontou ele, que “não conhecia muito bem” o uruguaio, e não espera ser visitado por um político daqui tão cedo. “Te falar? Político brasileiro é muito cheio de frescura. Aqui é só rabada, feijoada, mocotó.”

A clientela cativa do bar se surpreendeu ao ver Mujica na hora do almoço. “Eu não aguentei: tive que dizer ao presidente que ele estava sentado na cadeira onde almoço todos os dias”, divertiu-se Cláudio Ferreira, 58 anos, que trabalha na região. “Um cara humilde demais, o Mujica. Comeu bem a rabada. Tive que sugerir ao Zé para levar a laranja pra ele, se não a comida fica pesada demais”, contou.

Na passagem do ilustre visitante, um lamento: a ausência do tradicional fusca que fica sempre estacionado na Rua Santa Amélia. “Ele ia gostar de ver o fusquinha, bem cuidado igual ao dele!”

Liberação das drogas

Na ABI e na Uerj, Pepe Mujica falou sobre a necessidade de alterar a política de drogas no Brasil e no mundo. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá sobre a liberação do porte para uso próprio de entorpecentes.

'Políticos devem viver uma vida simples como a maioria'%2C disse José Mujica%2C ex-presidente do Uruguai%2C na quinta-feira%2C durante homenagem na ABIJoão Laet / Agência O Dia

Na época em que era presidente, o hoje senador uruguaio sancionou lei que coloca nas mãos do Estado a produção, distribuição e venda de maconha. “O narcotráfico é pior que a droga. Estamos fazendo uma experiência no Uruguai. Não sabemos no que vai dar. Sabemos que o que vínhamos fazendo não dava resultado. Se você quer mudar alguma coisa, não pode ficar fazendo sempre a mesma coisa. Isso multiplica a violência”, disse.

Na Uerj, foi ovacionado ao se posicionar contra a redução da maioridade penal. Mujica também falou da necessidade de construir novos valores para o capitalismo e para a felicidade das pessoas.

CNBB pede ‘lucidez’ no debate

Em nota divulgada na quinta-feira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu “lucidez” no debate sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, e afirmou que a medida vai legalizar “uma cadeia de tráfico e de comércio, sem estrutura jurídica para controlá-la”.

Na nota, a CNBB afirmou que liberar o porte de entorpecentes vai “agravar o problema da dependência química” e facilitar a “livre circulação” de drogas no país. Contrária à mudança na legislação atual, a entidade critica o argumento de que a norma em vigor viola o direito à privacidade.

“Na medida em que se libera, está se dizendo que não é um problema, não vai afetar nada e que é uma questão individual. Não, é uma questão social”, disse o vice-presidente da CNBB, dom Murilo Krieger.

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